O número de segurados cresce e as mensalidades disparam. Ainda assim, os planos acumulam prejuízos bilionários
Com um déficit de mais de 20 bilhões de reais acumulado nos últimos três anos, os planos de saúde caminham para o colapso? Não há consenso na resposta. Alguns temem a persistência da crise, outros fazem previsões otimistas, mas essa forma de acesso à assistência médica privada continua sendo um item prioritário para um quarto da população. A despeito do prejuízo bilionário, o número de segurados aumentou 1,9% nos dez primeiros meses de 2023, chegando a 51 milhões de brasileiros, segundo o mais recente boletim da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS.
No terceiro trimestre do ano passado, os planos de saúde tiveram lucro líquido de 3,1 bilhões de reais, o maior dos últimos dois anos, o que poderia apontar para uma recuperação do setor. Ainda pairam dúvidas, porém, quanto ao modelo de gestão, um dos fatores que contribuem para a crise. Mesmo com os números positivos, mas considerando a dinâmica observada desde o fim de 2021, o resultado operacional das empresas do setor entre janeiro e setembro do ano passado foi um déficit de 6,3 bilhões.
De acordo com a ANS, o prejuízo “foi compensado pelo resultado financeiro recorde de 8,37 bilhões de reais, advindo principalmente da remuneração das suas aplicações financeiras, que acumularam ao fim do período quase 107 bilhões”. Nesse mesmo período, foi observada uma margem bem pequena de superávit das operadoras de planos, porque o valor para cobrir as despesas de saúde dos segurados alcançou 88,2% das receitas obtidas com as mensalidades. Esse elevado grau de sinistralidade torna a operação insustentável a longo prazo.
Tratamentos represados na pandemia pressionam as contas das operadoras
De acordo com a Federação Nacional de Saúde Suplementar, a FenaSaúde, os planos de saúde cobrem anualmente cerca de 1,8 bilhão de procedimentos, entre consultas, exames, internações, terapias e cirurgias, motivo pelo qual tem levado muitas operadoras a funcionar no vermelho, sem receita suficiente para cobrir as despesas assistenciais, comerciais e administrativas. Atualmente, cerca da metade das empresas em atividade no setor, 331 ao todo, tem operação deficitária. Nos últimos dez anos, o número de operadoras caiu de 920 para 680. O boom nas terapias e os tratamentos de grande complexidade têm sido apontados como o principal motivo para a elevada sinistralidade dos planos, onerando consideravelmente os tratamentos custeados pela saúde suplementar.
“As terapias, os medicamentos e os procedimentos em saúde estão cada vez mais caros e vêm sendo incorporados em ritmo acelerado, por vezes sem passar pelo processo de avaliação de tecnologias em saúde, que leva em conta a efetividade e o custo. No Brasil, não existe compartilhamento de risco entre a indústria farmacêutica e as operadoras de planos de saúde, ao contrário do que ocorre em países mais ricos. Um exemplo de como as tecnologias caras podem afetar a sustentabilidade do setor é o medicamento Zolgensma, cuja dose custa 7,6 milhões de reais. Atualmente, 68 operadoras de planos não têm esse faturamento por ano”, diz Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde. A medicação é indicada para bebês de até 6 meses de vida, diagnosticados com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I. Desde fevereiro de 2023, o produto passou a fazer parte do rol de medicamentos e procedimentos de cobertura obrigatória pelos planos de saúde.
Marcos Novais, superintendente-executivo da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge), diz existir um saldo negativo deixado pela pandemia, período de grande demanda para os planos de saúde, com superlotação dos hospitais tanto públicos quanto privados. “Na pandemia, houve um momento em que as operadoras tiveram de custear insumos médico-hospitalares muito caros, o que gerou uma conta explosiva”, observa o gestor, acrescentando que, com o controle da Covid, os tratamentos represados de outras doenças retornaram com toda força, contribuindo ainda mais para a crise atual. “Primeiro, houve uma onda na oncologia, porque os pacientes ficaram mais em casa, demoraram a descobrir o câncer e, quando descobriram, os tratamentos ficaram muito mais dispendiosos. Depois vem a onda das terapias, como fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e fisioterapia, especialidades que representavam algo em torno de 2% do custo total da operação e hoje superam 9%”, salienta. Essas terapias são procedimentos que constam no rol da ANS para tratamento de Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD) e Transtorno de Espectro Autista (TEA).
Disputa. A vacinação é um exemplo das atribuições empurradas para a rede pública. Os planos também se esquivam de gastos com tratamentos dispendiosos – Imagem: Roque de Sá/Ag. Senado e Cristine Rochol/Prefeitura de Porto Alegre/RS
“Depois da pandemia, era esperado que ocorresse um boom na procura dos serviços de saúde suplementar, porque todos aqueles tratamentos eletivos que estavam represados tinham de dar vazão em algum momento. Agora, a gente também tem de levar em consideração que os planos de saúde nunca lucraram tanto na pandemia, porque esses tratamentos eletivos, dependendo até de algumas urgências, foram postergados e praticamente não usavam o plano. A gente observa que, lá atrás, em 2020 e 2021, as operadoras explodiram de ganhar dinheiro. Só agora vemos uma redução do lucro, e elas continuam faturando alto”, destaca Washington Fonseca, especialista em Direito Médico e sócio do Fonseca Moreti Advogados.
Atender o rol taxativo determinado pela ANS é um problema histórico que marca o embate entre planos e consumidores. As operadoras resistiram em custear o tratamento para HIV, hemodiálise e doenças complexas como câncer. Recentemente, a ANS incluiu no rol o tratamento de quatro novas moléstias, que passaram a ter cobertura obrigatória pelos planos de saúde: retocolite ulcerativa moderada a grave (inflamações no intestino), câncer na medula óssea, hemofilia e osteoporose. A negação dos planos de saúde em não cumprir o rol taxativo, além de levar à judicialização, tem empurrado muitos usuários para o Sistema Único de Saúde, mesmo pagando por uma assistência privada. A cobertura do SUS aos pacientes com plano de saúde é, principalmente, nos tratamentos de alta complexidade e em municípios em que o sistema não está estruturado e precisa recorrer à rede credenciada.
“A gente tem problemas graves de desequilíbrio, em que o SUS funciona como um resseguro. A operadora, ao negar diretamente a assistência, burocratizar o acesso à terapia ou não querer reembolsar adequadamente, acaba gerando um contexto em que para a pessoa fica mais fácil recorrer ao SUS, mesmo pagando o plano de saúde”, critica Ana Carolina Navarrete, coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar do Conselho Nacional de Saúde, o CNS. “Boa parte do financiamento da saúde suplementar vem do SUS. Muitas vezes são procedimentos, consultas e exames que o próprio sistema não consegue disponibilizar e repassa verba para alguma unidade que atende por meio de convênio. Em cidades do interior que não têm um neurocirurgião pediátrico ou outra assistência bem específica, a verba do SUS pode ser destinada para uma unidade privada e credenciada que faça o atendimento”, completa Nycolle Soares, advogada e especialista em Direito da Saúde.
O modelo privado é ineficiente e perdulário. O SUS recebe menos recursos e atende o triplo de pacientes
Dos 711,4 bilhões de reais em despesas de saúde no Brasil em 2019, as famílias e as instituições sem fins lucrativos responderam por 427,8 bilhões de reais do total, o que corresponde a 5,8% do PIB, enquanto o governo desembolsou 283,6 bilhões de reais, menos de 4% do PIB. Em outras palavras, o SUS recebe menos recursos e atende três vezes mais pacientes, 150 milhões de brasileiros. “Muitas vezes aquilo que o SUS oferta são procedimentos que seriam impagáveis pelos planos privados, como os transplantes, que contemplam pessoas de baixíssima a altíssima renda. A vacinação nunca, em hipótese alguma, poderá ser terceirizada, porque a estratégia de imunização passa por uma questão de soberania”, diz Soares.
Além de transferir para o SUS alguns procedimentos, o não cumprimento do rol taxativo também tem gerado protestos de movimentos sociais e um grande número de ações judiciais contra o setor. A judicialização é responsável por cerca de 40% do déficit acumulado nos últimos anos. De 2019 para cá, as queixas aumentaram 120%, passando de 363 para 973 por dia. Também constam nas reclamações as taxas abusivas nos reajustes, negativa na autorização de cirurgias ou exames e recusa de reembolsos. Segundo a Abramge, em 2020 os processos judiciais representaram prejuízo de 2,7 bilhões de reais, caindo para 2,5 bilhões de reais em 2021, redução que é associada ao efeito do confinamento do primeiro ano da pandemia de Covid-19. Em 2022, a judicialização causou um déficit de 4 bilhões de reais, alta de quase 60%.
Os exorbitantes aumentos das mensalidades dos planos de saúde também têm levado à judicialização e forçado muitas pessoas a cancelar o serviço e migrar para o SUS. Cerca de 80% dos usuários dos planos privados estão vinculados a algum CNPJ, o que representa grande problema para essas empresas, uma vez que os aumentos dos planos coletivos não são regulados pela ANS, como acontece com os planos de pessoas físicas. Dados de uma pesquisa do Instituto Brasileiro do Consumidor mostram que, entre 2018 e 2023, o aumento acumulado nos planos individuais foi de 35 % na mensalidade, enquanto nos coletivos, incluindo o Microempreendedor Individual, os chamados MEI, o reajuste no período chegou a 80%.
Crítica. O foco deveria ser a promoção da saúde, e não a “cura de doenças”, diz Vecina – Imagem: Redes sociais
“A tendência é de o plano coletivo ser cada vez mais ofertado, por conta da falácia de que ele é mais barato. Ele pode até ser mais barato logo de entrada, mas, com o tempo, o valor do reajuste torna a mensalidade impraticável”, alerta Ana Carolina Navarrete. “O plano individual sai mais caro inicialmente, mas os reajustes são mais controlados. É por isso que o movimento do mercado é para que tenha cada vez menos a figura do plano individual, porque, para ter viabilidade econômica, precisa de gente que consome pouco, que custa pouco, e pague para manter outro público de segurado, que consome mais e custa mais”, completa Nycolle Soares, referindo-se à pessoas mais velhas que têm algum tipo de doença crônica. Lidar com o envelhecimento da população é, realmente, um dos grandes desafios das operadoras privadas de saúde, considerando que, quanto mais idosa a pessoa for, aumenta a propensão de elas ficarem doentes e, consequentemente, aumenta o número de atendimento médico-hospitalar.
De acordo com o Censo Demográfico de 2022, as pessoas acima de 60 anos representam 15,8% dos brasileiros, aumento de mais de 5% em relação ao censo anterior. Entre os segurados dos planos privados, os idosos somam 14,3% de participação do total. “A saúde suplementar tem como pilar o chamado pacto intergeracional, pelo qual os jovens custeiam parte da utilização do sistema pelos idosos. A sustentabilidade desse sistema é ameaçada quanto menor for o número de jovens contribuindo. Só nos últimos dez anos, o número de beneficiários de planos de saúde na faixa etária dos 20 aos 39 anos caiu 7,6%, enquanto o de maiores de 60 anos cresceu 32,6%”, salienta Vera Valente, da FenaSaúde. Essa desproporção pode acentuar a crise na saúde suplementar. “A idade e a sinistralidade estão intimamente ligadas e representam uma tempestade perfeita para que as pessoas não consigam mais suportar os planos de saúde”, comenta Washington Fonseca, prevendo uma redução no número de usuários.
Para Gonzalo Vecina, médico sanitarista e fundador da Anvisa, o maior gargalo da saúde suplementar é o modelo de negócio que se consolidou ao longo das décadas. Ele explica que as operadoras se portam como meros intermediários entre os usuários do sistema e os prestadores dos serviços, sem nenhuma preocupação com a saúde básica e sem querer abrir mão de parte dos lucros. “Não tem nenhum problema nos planos de saúde. O modelo é que está errado. Os planos têm um projeto assistencial que nunca teve a ver com assistência à saúde. Vendem assistência para o comprador, que quer ser atendido pelo prestador, que são os médicos, os hospitais, as clínicas. Isso não é saúde, é curar doenças”, critica Vecina, citando a disparidade entre o número de internações na rede privada e no SUS. Enquanto a primeira interna, por ano, 15% da população, o SUS interna 8%, mesmo atendendo três vezes mais que a rede privada. “Por que um interna 8% e o outro 15%? O nome disso é sinistralidade.”
A judicialização é responsável por 40% do déficit do setor, de acordo com a Abramge
Na visão de Vecina, quando o usuário adquire um plano privado, ele está comprando o acesso ao atendimento médico e hospitalar, não um serviço que prime pela saúde integral. “Eu não vejo nenhum movimento no sentido de se fazer assistência à saúde, de se fazer prevenção primária, secundária ou terciária. E se os planos não aceitarem que o usuário precisa de assistência à saúde, esse mundo não se move. Tem de ter a parte da prevenção e a parte da cura”, explica, cobrando uma atuação mais rigorosa por parte do Poder Público. “Qual a função do Estado nesse sentido? Estou falando de Cade, do Ministério da Justiça, da ANS. É preciso manter a civilidade nas relações econômicas, porque o resto vai ter de ser resolvido por esse ente chamado mercado, ou seja, quem vende e quem compra plano de saúde. Um dia tem de cair a ficha de que temos de fazer assistência integral à saúde e vender esse produto.”
Desde 2006 tramita na Câmara dos Deputados um projeto com alterações na Lei dos Planos de Saúde. Ao longo de quase uma década, outros 270 projetos foram anexados ao PL, que está pronto para votação em plenário. O relator da matéria, deputado Pereira Júnior, do PSB maranhense, defende a proibição de as operadoras rescindirem, unilateralmente, os contratos firmados com beneficiários e propôs que a ANS passe a regular os aumentos dos planos coletivos. “O que a gente precisa avançar é em criar um protocolo para cada uma das doenças. Um protocolo com embasamento científico. A gente precisa disso o quanto antes para organizar a gestão, senão isso fica impossível de manter”, explica Marcos Novais, da Abramge.
Source: Carta capital