Plataformas de comércio internacional chegam a vender produtos pela metade do preço; falta de taxação é desvantagem para negócios nacionais

O cliente chega na loja, pergunta o valor de um produto, faz cara de espanto e diz que viu na internet pela metade do preço. Essa é uma cena cotidiana em diversas regiões do país, mas especialmente nas zonas de comércio popular, como no Brás, em São Paulo, conhecido nacionalmente pelo mercado de moda, e na Rua Santa Ifigênia, onde o foco é a venda de eletrônicos e acessórios.

Esses episódios passaram a ser mais frequentes nos dois últimos anos, quando os sites estrangeiros de vendas ganharam capilaridade no país. Mesmo viajando milhares de quilômetros, os pedidos feitos em marketplaces como AliExpress, Shein e Shopee chegam a custar a metade do valor que é vendido pelos pequenos e médios comerciantes brasileiros.

Segundo um relatório do BTG Pactual, publicado no começo deste ano, só a Shein faturou mais de R$ 8 bilhões em vendas para clientes brasileiros em 2022, com um avanço de 300% em relação aos números do ano anterior. Isso representa uma soma maior do que tudo que foi vendido pelas cinco maiores varejistas brasileiras de moda juntas, de acordo com um mapeamento da gestora Aster Capital.

“Conheço várias pessoas que já estão desacreditadas de continuar seu próprio negócio porque é difícil concorrer com esses sites. As pessoas chegam na loja, desdenham e falam que na internet é mais barato. É uma situação preocupante porque envolve toda a cadeia. Finaliza no vendedor, mas atrapalha também o distribuidor e o produtor”, pontua Karyna Terrell, influenciadora digital e empreendedora do segmento têxtil.

Esses preços são viabilizados por dois fatores: mão de obra barata em países como China e Singapura, além de uma estratégia de burlar a legislação brasileira no que se refere à exportação dos produtos. Conforme explica o advogado e professor de direito tributário Daniel Moreti, atualmente, a regra é que pacotes vindos do exterior estão isentos de tributação, desde que tanto o remetente quanto o destinatário sejam pessoas físicas, com o limite de US$ 50 (cerca de R$ 250) por pacote. Já os itens enviados de empresas para consumidores, por regra, devem ser sempre taxados. Mas não é exatamente isso que acontece.

“Uma das acusações que se faz é que, nas remessas para o Brasil, as plataformas estariam indicando que o vendedor é uma pessoa física, quando na verdade é pessoa jurídica, com uma empresa estabelecida lá fora. O segundo ponto é que, considerando este limite de 50 dólares, algumas empresas estariam dividindo uma compra em diversos pacotes para que nenhum ultrapasse o teto”, explica Daniel, sócio do escritório Fonseca Moreti Advogados.

Neste cenário, as plataformas estrangeiras conseguem oferecer produtos pelo menos 33% mais baratos, já que essa foi a carga tributária do Brasil no ano passado, de acordo com a estimativa do Tesouro Nacional. Se acrescentada a margem de lucro que tanto os pequenos empreendedores quanto às grandes redes de varejo precisam obter, a diferença pode ficar ainda maior.

“Quando o consumidor compra de uma empresa estrangeira, ele está enviando dinheiro para fora do país. Não sabemos, inclusive, se as empresas estão pagando os tributos do local onde está sediada ou se respeita as legislações trabalhistas para a produção desses itens. Por outro lado, as companhias brasileiras que já não conseguiriam alcançar o preço praticado pelas concorrentes de outros países começam a ‘sufocar’, pois já estão mal em razão do cenário econômico dos últimos anos”, comenta.

Procuradas para comentar sobre a divisão dos pedidos e questionadas sobre os repasses tributários que fizeram ao governo brasileiro, AliExpress e Shein não quiseram se manifestar, mas disseram que cumprem a legislação brasileira. Já a Shopee disse que sua atuação se dá apenas pela oferta da plataforma de venda e no de envio das encomendas, e que paga os impostos devidos pelo serviço de logística.

Problema e solução

Vender online já faz parte do negócio de muitos empreendedores brasileiros, que escolhem entre montar sua própria plataforma ou usar os marketplaces nacionais e os estrangeiros para anunciar seus produtos. Especialmente Amazon, Mercado Livre e Shopee são sites mais conhecidos no território nacional e que, por isso, conseguem dar mais visibilidade para negócios que ainda estão crescendo.

Como resultado, no ano passado, foram mais de R$ 169,6 bilhões vendidos online, segundo estatísticas da Abcomm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico). Com um ticket médio de R$ 460 por pessoa, as compras online já representam 10% de tudo o que gira no segmento varejista, e esse número deve dobrar no acumulado de 2023, ainda segundo a entidade.

André Iizuka, diretor da Abcomm, destaca que manter uma loja online tem um investimento menor que o da abertura de um espaço físico, que inclui pagamento de aluguel e de um número maior de funcionários. Portanto, essa tem sido a escolha de muitos empreendedores, que anunciam seus produtos em lojas próprias ou em sites marketplaces, que funcionam como shoppings virtuais.

A comerciante Karyna Terrell destaca que, especialmente durante a pandemia, muitos lojistas passaram a vender seus produtos online e que isso manteve muitas famílias. No entanto, ela pontua, mesmo nesses sites, os vendedores precisam concorrer com a própria plataforma, que, em alguns casos, vende os itens pelo preço de atacado, ou seja, bem menor, dado o contexto tributário.

“É preciso manter tudo competitivo. A empresa que traz a mercadoria de fora tem que ter um preço à altura de quem vende aqui no Brasil, para que o consumidor escolha baseado na marca, na qualidade ou no atendimento. É importante que seja feita uma reforma que dê chances para uma concorrência mais leal, que não acontecido agora, entre os nossos produtos e os que são importados”, opina Terrell, que também dá consultoria para novos empreendedores.

Arcabouço fiscal

Diante de pressões políticas e do setor varejista, o governo brasileiro tem se movimentado para diminuir a discrepância fiscal que há entre as duas relações de consumo. Aproveitando as discussões sobre a nova regra fiscal, o Ministério da Economia discute a implantação de um regime de tributação que onere de alguma forma as plataformas estrangeiras que atuam no país.

Em entrevistas recentes, o ministro da Economia, Fernando Haddad, esclareceu que os sites estrangeiros devem ser enquadrados no apelidado ‘arcabouço fiscal’. Segundo estudos da pasta, essa e outras medidas -como a taxação de sites de apostas esportivas– devem gerar um adicional de R$ 100 bilhões anuais aos cofres públicos.

“Uma empresa que tem comércio eletrônico, escamoteia aquele comércio e faz passar como uma remessa de pessoa a pessoa para não pagar impostos… As empresas estrangeiras e brasileiras que estão sofrendo a concorrência desleal de um ou dois players mundiais estão pedindo providências à Receita”, pontuou, em uma entrevista dada à GloboNews.

Em nota ao InfoMoney, o ministério afirmou que o tema está em discussão, mas que nenhum instrumento legal para tratamento desses produtos está definido. “As propostas, quando finalizadas, serão apresentadas após validação interna no governo”, acrescentou o órgão.

Independente de qual modelo for adotado, caso de fato o poder Executivo crie uma nova regra para essas empresas, além das asiáticas, Mercado Livre e Amazon também devem ser alcançadas. Isso porque, embora tenham sede no Brasil, esses marketplaces também oferecem o serviço de venda internacional.

Na avaliação de Moreti, que também é juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, o maior problema está na fiscalização e no controle dos produtos que entram no Brasil. Por isso, ele acredita, deve haver um esforço do governo para aumentar ou até criar novos instrumentos para verificação dos pedidos, como a necessidade de um cadastro prévio para identificar o vendedor e comprador.

“As varejistas brasileiras têm feito uma grande pressão sobre o governo federal para que se adote algumas medidas a fim de controlar a entrada dos itens ou criar uma forma de tributação para eles. O governo promete que fará algo, mas ainda não diz como nem qual o meio”, avalia o advogado. “Esse é um problema que está colocado”, ressalta.

Já Iizuka, da Abcomm, que tem acompanhado de perto as discussões da reforma tributária, destaca que o assunto está em pauta, e alerta que o governo tem de tomar cuidado para não penalizar outras empresas. Para ele, aumentar o imposto de outras empresas do setor digital pode ter efeito contrário, inviabilizando os negócios, gerando falências e monopólios.

“Possivelmente, essa reforma só vai sair em 2025 porque o debate é longo, não é tão simples e vem se estendendo há anos”, prevê. “Há uma grande dificuldade de negociação, com os estados e o meio empresarial. Todas as entidades estão acompanhando e algumas empresas especializadas na área de relações de governo já emitiram seus informes”, detalha.

Shein em alerta

Um relatório do Itaú BBA, publicado na quinta-feira (6) passada, mostra que as discussões em torno da taxação dos e-commerces estrangeiros podem ter algum impacto nas vendas da Shein. Em janeiro e fevereiro deste ano, as vendas do e-commerce sediado em Singapura cresceram entre 10% e 15%, contra as altas entre 90% e 100% reportadas nesses mesmos meses do ano passado.

“Isso pode significar, possivelmente, que os reguladores já adotaram uma fiscalização mais rigorosa da atividade transfronteiriça no Brasil”, comentou o analista setorial Thiago Macruz. “Não descartamos a possibilidade de implantação de medidas de arrecadação tributária ainda mais rígidas no curto prazo, que podem afetar as operações desses players”, continuou.

O banco acredita que, ainda que o governo não tenha anunciado novas regras formalmente, os órgãos fiscais já estão adotando uma “supervisão mais rigorosa da atividade internacional no Brasil”, disse. Para embasar essa tese, o Itaú destaca que diversos consumidores tem ido às redes sociais para reclamar que seus itens foram retidos na Receita Federal para pagamento de taxas adicionais.

Se o cenário se confirmar, os maiores beneficiados serão, na verdade, as grandes varejistas, com destaque para Lojas Renner (LREN3) que pode avançar no médio prazo.

O que dizem as empresas citadas

InfoMoney tentou marcar entrevista com as empresas citadas nesta reportagem, mas todas preferiram se pronunciar por meio de nota. Confira, a seguir, o que disseram cada uma das citadas.

AliExpress: O AliExpress é um marketplace global que conecta compradores e vendedores de todo o mundo. O AliExpress tem o compromisso de fornecer aos consumidores brasileiros produtos de qualidade e participar ativamente no desenvolvimento da economia digital local. Cumprir as regulamentações dos locais onde operamos é nossa principal prioridade.

Mercado Livre: O Mercado Livre compartilha da preocupação do varejo quanto à legalidade da atividade. Em operação no Brasil há mais de 23 anos, a empresa não se enquadra no questionamento levantado por parte do setor, defendendo que a observação das normas vigentes, a adoção de boas práticas, a qualidade da oferta e a experiência do usuário não dependem da nacionalidade de pessoas ou empresas. Reitera ainda que o segmento de compras internacionais representa uma pequena parte do volume anual de vendas no Brasil, respeitando integralmente a legislação tributária vigente. O Mercado Livre reforça seu compromisso para proteger o ambiente econômico, trabalhando por um comércio eletrônico justo, que promove condições e oportunidades iguais para todos.

Shein: A Shein ressalta que cumpre as leis e regulamentos locais do Brasil. A empresa destaca ainda que com o seu modelo único de produção, em pequena escala e com demanda garantida, produz produtos de qualidade e acessíveis para atender à demanda de seus consumidores. Além disso, não mede esforços para empoderar comunidades locais, tanto econômica como socialmente.

Shopee: Diferente de outras plataformas que dependem da importação de produtos, o foco da Shopee consiste em conectar vendedores e consumidores locais e ajudar as empresas brasileiras a crescer e prosperar online. Além disso, nosso modelo de negócios é completamente diferente de uma plataforma focada em venda internacional. A grande maioria dos pedidos (mais de 85%) na Shopee são de vendedores brasileiros (registrados com CNPJ) que realizam transações com compradores locais.

Amazon não se pronunciou até a publicação e atualização desta reportagem.

Fonte: InfoMoney.

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